### IMPORTÂNCIA DO ESTUDO
A função retardada do enxerto (Delayed Graft Function, DGF) após um transplante renal é definida como a necessidade de pelo menos uma sessão de diálise na primeira semana após o transplante renal. Tal evento ocorre em mais de 30-50% dos transplantes renais e está associado a eventos adversos a curto e longo prazo, como o risco de rejeição, falência do enxerto e até mortalidade.
Intervenções e estratégias que possam reduzir a DGF estão em constante estudo. A administração de fluidos durante o procedimento cirúrgico e após o transplante renal pode contribuir para o risco de disfunção renal.
A utilização de solução salina 0,9% (Cl\- 154 mmol/L) pode causar acidose metabólica hiperclorêmica e promover disfunção renal, portanto, pode contribuir para a ocorrência de DGF após o transplante renal.
Soluções cristaloides balanceadas possuem uma concentração de cloreto próxima à concentração plasmática fisiológica, e estudos retrospectivos têm mostrado uma associação com a redução da taxa de DGF após o transplante renal.
Diante desse cenário, foi desenvolvido o estudo **"Better Evidence for Selecting Transplant (BEST) Fluids trial"**, que comparou o uso de solução salina balanceada _vs._ SF 0,9% em pacientes submetidos a transplante renal.
## RESUMO DO ESTUDO
**Artigo**: Balanced crystalloid solution versus saline in deceased donor kidney transplantation (BEST-Fluids): a pragmatic, double-blind, randomized, controlled trial ([**link**](https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(23)00642-6/fulltext))
**Revista**: The Lancet, publicado em 18 de junho de 2023
Trata-se de um estudo randomizado, duplo-cego e multicêntrico realizado em 16 hospitais da Austrália e Nova Zelândia no período de 2018 a 2020.
**Foram incluídos** pacientes adultos e crianças candidatos a transplante renal de doador falecido. **Foram excluídos** pacientes com transplantes duplos ou crianças com menos de 20 kg.
Os participantes foram randomizados (1:1) antes da realização do transplante para receberem solução cristaloide balanceada (Plasma-Lyte 148, Baxter) ou SF 0,9%.
A composição da solução utilizada foi:
- **Plasma-Lyte** **148** (pH 7,4, Na 140 mmol/L, K 5 mmol/L, Mg 1,5 mmol/L, Cl 98 mmol/L, acetato 27 mmol/L e gluconato 23 mmol/L)
- **SF 0,9%** (pH 6,0, Na 154 mmol/L e Cl 154 mmol/L)
Após a randomização, a solução selecionada foi utilizada para a manutenção e/ou ressuscitação da volemia durante e após o procedimento cirúrgico, podendo ser mantida por até 48 horas após o transplante renal. A taxa de infusão e o volume foram definidos conforme a necessidade clínica do médico assistente.
O desfecho primário avaliado foi a ocorrência de DGF, definida como a necessidade de diálise nos primeiros 7 dias após o transplante renal. Pacientes que evoluíram para óbito ou falência precoce em menos de 7 dias após o transplante renal também foram classificados como DGF.
**Resultados**
Um total de 808 pacientes foram avaliados neste estudo (404 em cada grupo), com mais de 99% dos pacientes recebendo a intervenção proposta. No período perioperatório até 48 horas após o transplante renal, o grupo que recebeu solução balanceada teve um maior volume médio de infusão, com 8.143 mL (±4.077), em comparação com 7.180 mL (±3.448) no grupo que recebeu SF 0,9%.
Comparado ao grupo que recebeu SF 0,9%, o grupo que recebeu solução balanceada apresentou **menor valor sérico de cloro e sódio**, bem como **maiores níveis de pH e bicarbonato sérico** nas 48 horas após o transplante renal. Não foram identificadas diferenças nos níveis séricos de creatinina, hemoglobina ou potássio.
Foi observada a ocorrência de DGF em **30%** do grupo que recebeu solução balanceada, em comparação com **40%** no grupo SF 0,9% (**RR 0,74; IC 95%, 0,66-0,84; p <0,0001**). Não foram observadas diferenças nos subgrupos avaliados. O benefício foi maior nos pacientes que receberam enxerto renal de doadores falecidos por choque circulatório quando comparado aos doadores de morte cerebral (p=0,0072).
Também foi observado um menor número de sessões de diálise nos pacientes do grupo que recebeu solução balanceada, com 190 sessões de diálise a menos.
Não foram observadas diferenças na duração da DGF, na redução dos níveis de creatinina, na ocorrência de hipercalemia (K > 5,5 mmol/L) no dia 2 pós-transplante renal, na sobrevida do enxerto após 52 semanas, na função do enxerto, no tempo de internação hospitalar ou na mortalidade. Foi interessante notar que o débito urinário nas primeiras 48 horas foi maior no grupo que recebeu a solução balanceada (5295 mL vs. 4364 mL).
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## OPINIÃO NEFROUPDATES
Estudo multicêntrico, randomizado e duplo-cego com 808 pacientes demonstrou a redução da incidência de DGF **apenas** modificando a solução cristaloide utilizada, trocando o SF 0,9% pela solução Plasma-Lyte. Foi interessante notar que os pacientes que receberam a solução SF 0,9% realizaram **mais sessões de diálise** quando comparados ao grupo que recebeu Plasma-Lyte.
Consistente com estudos observacionais, a utilização de solução balanceada parece ser benéfica na prevenção da DGF sem aumentar o risco de hipercalemia. A simples estratégia de trocar o SF 0,9% por soluções com menor concentração de cloreto pode melhorar os desfechos após o transplante renal.
A possível justificativa é que, ao **prevenir a acidose metabólica hiperclorêmica**, pode ocorrer uma **menor vasoconstrição renal** e, consequentemente, **menos isquemia renal**. Esse racional serviu de embasamento nos estudos [SALT-ED](https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29485926/), [SMART](https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32882244/), [PLUS](https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35041780/) e [BaSICS](https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34375394/), com resultados conflitantes quanto redução desfechos renais para a população em geral.
Podemos interpretar também que soluções balanceadas, como **Soro Ringer Lactato, Sterofundim ou Elo-mel**, podem ter o mesmo papel protetor, já que possuem menor concentração de cloreto. No entanto, são necessários estudos adicionais para comprovar se a causalidade é a menor concentração de cloreto na solução ou se algum outro componente da solução explica o benefício da solução Plasma-Lyte.
Alguns estudos sugerem que o tempo de duração da DGF é mais importante do que a sua ocorrência. Modificações nos desfechos, como a redução da falência do enxerto, do tempo de internação ou da mortalidade, não foram observadas com a intervenção.
Um ponto importante é que a utilização de máquina de perfusão antes do transplante ocorreu em apenas 2% dos casos, uma medida que está associada à redução da taxa de DGF. Portanto, esses dados não podem ser generalizados para centros que utilizam máquina de perfusão renal.
A utilização de mais órgãos provenientes de doadores com idade avançada, múltiplas comorbidades e morte por causa circulatória, ou seja, com maior risco de DGF, será cada vez mais comum. Uma simples estratégia de mudança de fluidos intravenosos pode ter impacto na taxa de DGF e reduzir a necessidade de diálise nos primeiros 7 dias após o transplante renal.