A disfunção renal é um evento comum em pacientes com cirrose descompensada e infelizmente temos observado nas últimas décadas um aumento de casos de IRA e DRC nos pacientes com cirrose. De forma alarmante, pacientes com cirrose que evoluem com IRA/DRC apresentam uma mortalidade até 3 vezes maior do que aqueles que não têm disfunção renal.
Com o aumento da doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA), é esperado que a prevalência de disfunção renal em pacientes com cirrose só aumente.
Identificar a etiologia e gravidade de uma IRA em um paciente com cirrose é essencial. Fizemos um resumo dessa revisão muito interessante publicada no CJASN ([**link**](https://journals.lww.com/cjasn/pages/articleviewer.aspx?year=2022&issue=11000&article=00016&type=Fulltext)).
**AVALIAÇÃO DA FUNÇÃO RENAL NO PACIENTE COM CIRROSE**
A estimativa da TFG baseada na creatinina é um método pouco acurado. Na cirrose, ocorre redução da síntese hepática de creatina, bem como redução da massa muscular esquelética associada à doença. A TFG estimada tende a superestimar a função renal. Uma combinação de cistatina C e creatinina pode reduzir vieses de aferição.
A avaliação clínica em pacientes com IRA e cirrose é essencial diante de um paciente com elevação de creatinina e redução do débito urinário. Informações coletadas na história clínica e exame físico são essenciais, bem como exames laboratoriais e de imagem para afastar uma causa pós-renal.
**ESTABELECER A ETIOLOGIA DA IRA**
Temos a impressão de que a mortalidade de pacientes com Síndrome Hepatorrenal (SHR) é maior, porém, é observada uma mortalidade semelhante entre as diversas causas de IRA em pacientes com cirrose, ou seja, independentemente da causa ser nefrotoxicidade ou SHR, devemos ficar atentos à complexidade clínica.
O desafio clínico é realmente distinguir a etiologia, lembrando que pode ocorrer uma interposição de causas.
**ETIOLOGIA PRÉ-RENAL**
Pacientes com cirrose descompensada estão suscetíveis a IRA pré-renal, principalmente relacionado à perda de fluidos pelo trato intestinal. Não podemos esquecer da **lactulona** como laxante (profilaxia de encefalopatia hepática) e **uso de diuréticos** para o tratamento de ascite refratária.
Pode ocorrer NTA secundária ao insulto pré-renal persistente causado por um **choque hemorrágico (varizes esofágicas) ou choque séptico (PBE).** No exame de urina, cilindros granulosos sugerem evento pré-renal.
O tratamento de uma IRA pré-renal na cirrose é a ressuscitação volêmica, porém, a avaliação do status volêmico é um desafio para todo nefrologista.
Um teste terapêutico de **expansão com albumina** tem sido comumente recomendado, mas devemos ficar atentos ao risco de hipervolemia e congestão pulmonar. Uma avaliação com **POCUS (POint-of-Care Ultrasound)** pode ser de grande ajuda para classificar pacientes que estão com hipovolemia ou hipervolemia.
**SÍNDROME HEPATORRENAL (PRÉ RENAL?)**
A SHR tipo 1 é uma forma única de IRA pré-renal em pacientes com cirrose, ascite e hipertensão portal. O quadro mantido de **hipertensão portal, vasodilatação periférica e redução do volume circulatório efetivo** gera um estado de hiperativação do sistema simpático e do eixo renina-angiotensina-aldosterona.
Estabelecer o diagnóstico de SHR é um desafio, frequentemente não possuímos a creatinina basal, e a apresentação clínica é muito variável.
Além disso, outros fatores de confusão como infecção, NTA e nefrotóxicos complicam nossa avaliação.
Alguns fatores predizem que estamos diante de um paciente com SHR-1:
1. Valores mais elevados de creatinina
2. Pressão sistólica baixa
3. Status hemodinâmico hiperdinâmico
4. Falência hepática crônica-agudizada
A Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE) frequentemente desencadeia IRA em pacientes com cirrose descompensada, por isso o uso empírico de albumina para prevenção de IRA/SHR-1 em paciente com cirrose.
O tratamento da SHR-1 é centrado em reverter o status hemodinâmico, principalmente a vasoconstrição. Para isso, fazemos uso da terlipressina ou noradrenalina.
Fatores que influenciam uma boa resposta renal ao uso de vasopressores:
1. Início precoce
2. Elevar a pressão arterial média (PAM) ≥ 15 mm Hg
3. Grau de disfunção hepática
4. Resolução do fator desencadeante (infecção, sangramento...)
Com base em estudos clínicos, o uso de noradrenalina e terlipressina tem sido recomendado. A evidência para o uso da terlipressina vem do [**CONFIRM trial**](https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2008290), que randomizou 300 pacientes com SHR para receberem terlipressina ou placebo para reverter SHR e evitar diálise, sendo observado benefício com o uso da terlipressina (32% versus 17%; P=0,006). Ficar atento ao risco de edema pulmonar com doses mais elevadas.
Para pacientes em que a terlipressina não está disponível e a noradrenalina não pode ser utilizada fora do ambiente de UTI, podemos utilizar a associação midodrina+octreotide, porém com menor potência vasopressora e com limitação de evidências.
**NEFROPATIA COLÊMICA**
Nefropatia colêmica ou nefrose colêmica refere-se à lesão renal causada pela deposição intratubular de cilindros de bile, mais descrita em pacientes com icterícia obstrutiva. O excesso de ácidos biliares pode afetar a hemodinâmica renal, contribuindo para a hipoperfusão. A severidade da hiperbilirrubinemia associa-se a uma menor resposta clínica ao uso de vasoconstrictores na SHR-1. Existem evidências de que o excesso de bilirrubina pode ser um fator independente que contribui para a IRA no paciente com cirrose.
É interessante ficarmos de olho em pacientes com níveis mais elevados de bilirrubina, sabendo que essa informação prediz um paciente mais grave, com menor resposta clínica. Não à toa, faz parte do score MELD.
**IRA INDUZIDA POR DROGAS**
O uso de antibióticos é frequente em pacientes com cirrose em ambiente hospitalar. Devemos ficar atentos ao risco de toxicidade direta e de nefrite intersticial aguda (NIA). Principalmente para casos de piúria estéril em pacientes em uso de antibióticos ou inibidores de bomba de prótons, pois a disfunção renal pode ser secundária a um quadro de NIA.
**CONGESTÃO VEIA RENAL**
Em pacientes com cirrose descompensada, uma causa de IRA pode ser a congestão da veia renal secundária à hipertensão intra-abdominal causada pela ascite e insuficiência cardíaca direita. Além de modelos em bancada que demonstram um aumento da liberação de óxido nítrico e lesão endotelial, é descrito aumento do débito urinário e do clearance de creatinina após redução da pressão abdominal que ocorre após realização de uma paracentese.
**GLOMERULONEFRITE**
Estudos de autópsia feitos em pacientes com cirrose mostram um envolvimento glomerular em 50% dos pacientes. A principal glomerulopatia identificada é a nefropatia por IgA (NIgA).
A nefropatia por IgA hepática é a principal causa secundária de NIgA. A maioria dos casos é assintomática e se apresenta com uma doença de progressão lenta. O foco do tratamento é o controle pressórico, utilizando IECA/BRA e controle da proteinúria.
Hepatite B e C podem induzir a formação de imunocomplexos e causar glomerulonefrite.
A glomerulonefrite associada com hepatite C se apresenta com um padrão membrano-proliferativo. Os pacientes se apresentam com síndrome nefrótica ou nefrítica, e as crioglobulinas estão frequentemente presentes. Mais de 25% dos pacientes apresentam disfunção renal, e o tratamento recomendado é a terapia com antivirais.
Imunossupressores como rituximab ficam reservados para casos refratários, e a plasmaferese pode ser necessária para casos com GN rapidamente progressiva.
A glomerulonefrite associada com hepatite B se apresenta com padrão membranoproliferativo e crioglobulinemia tipo 3. Imunossupressores devem ser evitados, pois podem acelerar a replicação do vírus B. Pacientes com GN devem ser tratados com antivirais. A plasmaferese fica reservada para casos com vasculites sintomáticas.
**NEFROPATIA OBSTRUTIVA**
Além dos diversos fatores de retenção urinária em pacientes internados, pacientes com cirrose em uso de midodrine, um alfa-bloqueador, podem contrair o esfíncter vesical e precipitar retenção urinária. É recomendada atenção especial e vigilância de retenção urinária em pacientes com cirrose descompensada.
## OPINIÃO NEFROATUAL
Diante de um paciente com cirrose que evolui com disfunção renal temos um verdadeiro desafio para identificar a possível etiologia da IRA.
O uso do POCUS é de grande auxílio para o nefrologista, especialmente na avaliação do paciente cirrótico, uma vez que rapidamente nos fornece informações sobre o status volêmico e obstrução urinária.
Não é infrequente que múltiplos mecanismos de lesão renal coexistam, logo, avaliação da história clínica, status volêmico e medicamentos em uso fazem são essenciais.