Baseado no artigo: Acute kidney injury in acute heart failure–when to worry and when not to worry? Nephrol Dial Transplant , 2025, ([link](https://doi.org/10.1093/ndt/gfae146))
Vamos começar com um caso clínico? 😊
Um homem de 72 anos, com histórico de insuficiência cardíaca (IC) com fração de ejeção reduzida (FE de 30%), hipertensão arterial sistêmica e doença renal crônica estágio 3b (TFG estimada de 38 mL/min/1,73 m²), chega ao pronto-socorro com dispneia progressiva há 4 dias, edema em membros inferiores e ganho de peso de 3 kg na última semana.
Exame físico:
* Pressão arterial: 145/90 mmHg
* Frequência cardíaca: 100 bpm, ritmo regular
* Sinais de congestão:
* Outros: Fígado palpável com sinal de refluxo hepatojugular.
Exames laboratoriais iniciais:
* Creatinina sérica: 1,8 mg/dL (basal: 1,5 mg/dL)
* Potássio: 4,6 mEq/L
* Sódio: 132 mEq/L
* NT-proBNP: 5000 pg/mL
* Hemoglobina: 12,5 g/dL
* ECG: taquicardia sinusal, sem sinais de isquemia.
* Raio-X de tórax: congestão pulmonar bilateral e aumento da silhueta cardíaca.
***
Evolução no hospital
Conduta inicial:
O paciente foi internado com diagnóstico de insuficiência cardíaca descompensada e hipervolemia. Foi iniciado:
1. Furosemida intravenosa (bolus de 80 mg seguido por 60mg de 6/6h)
2. Restrição hídrica (1,5 L/dia) e restrição de sódio (2 g/dia).
3. Monitorização diária de peso, diurese, pressão arterial e sinais de congestão.
Evolução clínica após 48 horas:
* Diurese acumulada: 4,2 L.
* Peso: redução de 2,5 kg.
* Dispneia: melhora significativa, sem necessidade de oxigênio suplementar.
* Creatinina: 2,1 mg/dL (aumento em relação ao basal).
Discussão com a equipe:
* Apesar da elevação da creatinina, o paciente apresentou melhora clínica consistente com boa resposta à descongestão.
* A elevação transitória foi atribuída ao mecanismo hemodinâmico e não a lesão renal estrutural.
Mas o nefro foi chamado e pediu para suspender a furosemida, o iSGLT2 e o iECA/BRA!? É isso mesmo??? ☹
Vamos ao artigo!
Quando se preocupar com IRA em pacientes com Insuficiência Cardíaca Aguda?
Contexto
A IC e a IRA frequentemente coexistem, criando uma complexa interação chamada síndrome cardiorrenal (neste caso tipo 1). Em pacientes com IC descompensada, o uso de diuréticos para tratar a hipervolemia e aliviar a sobrecarga hídrica pode elevar a creatinina, levantando a dúvida: quando isso realmente é preocupante???
O papel da sobrecarga de volume e da congestão venosa renal
Na IC, a congestão venosa renal devido ao aumento das pressões cardíacas direitas é uma das principais causas da disfunção renal... De fato, estudos indicam que a congestão, mais do que a redução do débito cardíaco, está por trás da IRA nesses pacientes. A terapia de descongestão melhora os resultados em curtos e médio prazos, mesmo com aumento transitório da creatinina.
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Aceitando uma "IRA aceitável"
* Um aumento leve da creatinina durante a descongestão é considerado aceitável se o paciente apresentar as seguintes condições:
Terapias de descongestão
1. Diuréticos de alça (furosemida, bumetanida, torsemida): Principais ferramentas para reduzir a congestão (no Brasil, leia-se furosemida. Claro, não isoladamente, mas em associação com tiazídicos, iSGLT2 e acetazolamida).
2. Ultrafiltração (UF): Pode ser útil em casos de resistência diurética, mas sua eficácia depende de uma abordagem individualizada ( não esquece da dose da furo que é bem maior na IC!)
Quando a IRA preocupa?
* Se associada à ausência de descongestão eficaz.
* Em casos de IRA grave (estágio 2 ou 3) devido a fatores como infecção, drogas nefrotóxicas ou hipotensão.
* Se houver sinais de lesão tubular aguda confirmada por biomarcadores.
Tabela 1: Impacto da IRA com e sem descongestão na mortalidade, perda de peso associada, dose de diuréticos e BNP na alta
Mas como podemos saber se é muito ou pouco a elevação da creatinina?
Podemos nos guiar pela figura acima como um semáforo😊
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Figura 1Sistema de semáforo para manejo de IRA de novo em pacientes com IC descompensada
UTI: infecção do trato urinário; CRP: proteína C reativa; AKI: IRA;
Dicas práticas
* Aceitar leve aumento de creatinina em prol de descongestão efetiva.
* Monitorar sinais de infecção, hipotensão ou outras causas não-hemodinâmicas de IRA.
Discussão com base no caso clínico inicial!
IRA aceitável:
Este paciente apresenta uma elevação leve da creatinina, comum durante a terapia de descongestão em IC. A melhora clínica (redução de edema, melhora da dispneia e perda de peso) indica que a elevação é transitória e aceitável.
Conceitos importantes:
1. Congestão venosa renal:
A congestão foi o principal mecanismo da disfunção renal, agravada pela pressão venosa central elevada.
2. Monitorização cuidadosa:
A decisão de manter a diurese agressiva foi sustentada pela ausência de sinais de lesão tubular aguda (ex.: hipotensão, febre, sinais infecciosos).
3. Prognóstico e manejo contínuo:
Com a estabilização clínica, o foco será na otimização de medicações de IC (IECA/ARB, betabloqueadores e antagonistas de mineralocorticoides), monitorando a função renal de perto
Encerramento do caso
Após 5 dias, o paciente recebeu alta com:
* Furosemida oral (40 mg 2x/dia).
* Início gradual de sacubitril-valsartana (após titulação da pressão arterial).
* Retorno ambulatorial em 7 dias para reavaliação laboratorial e clínica.
Lição do caso:
A elevação leve e transitória da creatinina durante a descongestão é frequentemente aceitável e não deve limitar o manejo eficaz da insuficiência cardíaca descompensada. Identificar sinais de congestão e tratá-los de forma agressiva pode salvar vidas.
Fez sentido?
Segue esse algoritmo da próxima vez 😊
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