O xenotransplante renal representa um avanço promissor para pacientes com doença renal terminal, especialmente diante da escassez de órgãos para transplante. Recentemente, foi realizado o primeiro transplante com rim suíno geneticamente modificado em um paciente humano, demonstrando a viabilidade dessa abordagem e os desafios clínicos envolvidos. Detalhes do caso estão publicados no NEJM ([link](https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2412747))
##### O Procedimento
Paciente: Homem de 62 anos com doença renal terminal, diabetes avançada, vasculopatia avançada e sem opções viáveis de acesso vascular para diálise. Possuía antecedentes de coronariopatia, insuficiência cardíaca, paratireoidectomia e transplante renal prévio (5 anos de transplante, perda por infecção pelo BK vírus).
Rim suíno geneticamente modificado: 69 edições genômicas, incluindo a deleção de três antígenos glicanos (3KO), inativação de retrovírus suínos e inserção de sete transgenes humanos (TNFAIP3, HMOX1, CD47, CD46, CD55, THBD, e EPCR).
Transplante autorizado como caso especial sob uso expandido.
##### Imunossupressão utilizada
Indução
* Timoglobulina (ATG) 1,5 mg/kg
* Rituximabe (1000 mg)
* Tegoprubart (anti-CD154, bloqueia a produção de anticorpos)
* Ravalizumabe (anti-C5)
Manutenção
* Prednisona, tacrolimo e micofenolato
Tempo de isquemia fria: 4 horas e 38 minutos
Confere o esquema de imunossupressão utilizado, bem como achados do intraoperatório:
#### Resultados e Complicações
Diurese após 5 minutos, total 6L nas primeiras 48 horas. Queda progressiva de creatinina 11,2>2,2 mg/dl no D6 pós Tx. O enxerto teve função imediata, eliminando a necessidade de diálise. No entanto, o paciente apresentou complicações significativas:
Dia 8 - Rejeição mediada por células T
* Aumento da creatinina (2,2 → 2,9 mg/dL).
* Febre, sensibilidade do enxerto e redução do débito urinário.
* Diagnóstico confirmado por biópsia (rejeição grau 2A).
* Tratamento: pulsoterapia com metilprednisolona, anticorpo monoclonal anti-IL-6 (tocilizumab), ATG (1,5 mg/kg) e intensificação da imunossupressão (tacrolimus e micofenolato). Devido achado de deposição C3 na biópsia, administrado Pegcetacoplan (inibidor C3).
* Melhora da diurese e queda de creatinina com tratamento da rejeição (Cr 2,5 mg/dl)
Dia 25 - Infeção de ferida operatória
* Necessidade de reabertura parcial da incisão e drenagem de coleção retroperitoneal.
* Tratamento: antibióticos de amplo espectro (linezolida e meropenem).
* Resolução com fechamento da incisão no Dia 37.
Dia 34 - Novo aumento de creatinina
Realizado no biópsia, identificado apenas fibrose intersticial focal, atrofia tubular e deposição de C3 sem evidências de rejeição ou microangiopatia trombótica. Realizado tratamento de suporte: hidratação intensiva, levando à redução da creatinina para 1,57 mg/dl. Não identificado hematúria ou proteinúria.
Dia 52 - Morte súbita por complicação cardíaca
O paciente interna por quadro de nova piora de creatinina, iniciado hidratação, porém apresentou piora progressiva do estado geral, desconforto respiratório, hipotensão e morte súbita.
Autópsia:
* Causa primária do óbito: Aterosclerose coronariana severa com fibrose miocárdica difusa, compatível com cardiomiopatia isquêmica avançada.
* Não foram encontrados sinais de rejeição do enxerto ou trombose do órgão transplantado.
* O rim xenotransplantado apresentava histologia preservada, sem evidências de rejeição hiperaguda, inflamação significativa ou microangiopatia trombótica.
Pontos levantados pelo artigo que geram aprendizado:
1. Microangiopatia trombótica era uma das principais complicações esperadas, não ocorreu devido o cuidado em utilizar bloqueadores do complemento bem como modificar genes envolvidos na regulação do complemento
2. Infecção por patógenos tipicamente suínos não foram identificados após extensa avaliação
3. A renina dos suínos não são efetivas em clivar angiotensinogênio em angiotensina II, resultando em disfunção do eixo renina angiotensina aldosterona e um maior risco de depleção volêmica
Implicações para a Prática Médica
O primeiro xenotransplante renal humano demonstrou a viabilidade funcional do enxerto e a necessidade de manejo intensivo da imunossupressão e infecções, sem sinais de rejeição hiperaguda. O desfecho fatal destacou a importância da avaliação criteriosa de comorbidades cardiovasculares na seleção de candidatos. Esses achados reforçam o potencial futuro do xenotransplante como alternativa à escassez de órgãos, exigindo refinamento contínuo da técnica e critérios de elegibilidade.