Metade dos pacientes com insuficiência cardíaca (IC) possui doença renal crônica (DRC). Olhando para a
população com DRC terminal, cerca de 36% dos pacientes em diálise possuem o diagnóstico de IC, o que se associa a um pior prognóstico clínico. De forma alarmante, metade das mortes dos pacientes em diálise é secundária a doenças cardiovasculares.
Diante deste cenário, vale a pena a leitura desta excelente revisão publicada no Journal of Cardiac Failure ([disponível aqui](https://onlinejcf.com/action/showPdf?pii=S1071-9164%2822%2900730-8)) intitulado "Managing Heart Failure in Patients on Dialysis: State-of-the-Art Review".
Vamos resumir os principais pontos do artigo:
Nas últimas décadas, drogas que modificam desfechos cardiovasculares em pacientes com IC com fração de ejeção reduzida (ICFER) são recomendadas pelas principais diretrizes, sendo chamadas de Guideline Directed Medical Therapy (GDMT), pois se associam com redução da taxa de mortalidade.
Sabemos que disfunção sistólica e hipertrofia do ventrículo esquerdo são preditores importantes de mortalidade em diálise. Os principais desafios incluem a adaptação das terapias para IC devido às mudanças de volume e eletrólitos inerentes ao tratamento de diálise, que podem influenciar a farmacocinética e farmacodinâmica dos medicamentos. Além disso, os pacientes em diálise frequentemente apresentam comorbidades que complicam o uso de terapias convencionais para IC.
Apesar disso, as evidências clínicas da utilização dos medicamentos de primeira linha na ICFER em pacientes
em diálise são de estudos pequenos, a maioria observacional. Vamos comentar um pouco sobre os principais tratamentos:
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Beta-bloqueadores (BBQ)
Os BBQ são medicamentos amplamente prescritos nos pacientes em diálise (aproximadamente 64% das
prescrições), porém apenas um estudo randomizado ([disponível aqui](https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11216954/)) avaliou segurança e eficácia dessa classe nos pacientes com ICFER em diálise, sendo evidenciada melhora da fração de ejeção e de classe funcional quando comparado ao placebo. No acompanhamento de 2 anos, os pacientes que receberam carvedilol tiveram uma taxa de mortalidade 49% menor do que os pacientes que receberam placebo (HR = 0,51 \[0,32-0,82]). No entanto, cerca de 14% dos pacientes foram excluídos por não tolerarem os BBQ (hipotensão, broncoespasmo ou piora de
classe funcional).
Estudos observacionais demonstram benefício em reduzir a mortalidade em cerca de 20%. Fatores a serem
considerados ao prescrever BBQ na diálise são a cardioseletividade e dialisabilidade. Atenolol, bisoprolol e metoprolol são BBQ seletivos, enquanto propranolol, carvedilol, labetalol e pindolol são não seletivos. BBQ como
atenolol, bisoprolol e metoprolol são altamente dialisáveis, enquanto carvedilol, labetalol e propranolol são pouco dialisáveis.
Não existe evidência do BBQ de escolha no paciente com ICFER em diálise, a escolha deve ser considerada de
acordo com as características dos pacientes, bem como tolerabilidade. Uma dica prática, metoprolol parece se associar com menor risco de hipotensão intradialítica, provavelmente por ser mais dialisável, podemos levar isso em consideração.
Inibidores da Neprilisina e dos Receptores de Angiotensina (ARNI)
Análise post hoc mostra que o sacubitril/valsartana é bem tolerado e efetivo nos pacientes com TFGe >30
mL/min/1,73m². Um estudo observacional mostrou que o uso do sacubitril/valsartana em pacientes em diálise se associou com melhora da FEVE%, índice de massa ventricular, diâmetro diastólico e classe funcional ([disponível
aqui](https://www.nefroatual.com.br/nefroupdates/posts/sacubitril-valsartana-para-pacientes-em-dilise)), porém não existem estudos randomizados e controlados que avaliem a real eficácia. Uma preocupação importante é sobre o risco de hipotensão nos pacientes em diálise, que deve ser conduzido com redução da dose ou suspensão do medicamento.
Atualmente existem 3 estudos em andamento para avaliar a segurança e eficácia do sacubitril/valsartana em
pacientes com IC e em diálise: NCT05243199; NCT04572724 e NCT04458285.
Inibidores da ECA e Bloqueadores do Receptor da Angiotensina
Os estudos que avaliaram o uso do iECA/BRA nos pacientes com ICFER em diálise são conflitantes. Um estudo
randomizado ([disponível aqui](https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0735109710038118)) avaliou o tratamento com BRA em 332 pacientes com ICFER em diálise com seguimento de 3 anos, sendo observada redução de mortalidade geral (HR, 0.51 \[0.32-0.82]), mortalidade cardiovascular (HR, 0.42 \[0.38-0.61]) e hospitalização (HR, 0.38 \[0.19-0.51]). Porém, o grupo que recebeu telmisartana apresentou maior taxa de descontinuação devido a hipocalemia/hipotensão (16,3% vs. 10,7%). Não existem estudos randomizados específicos para avaliar o uso do iECA em pacientes com ICFER em diálise, e
estudos observacionais não demonstram um benefício claro.
Estudos observacionais incluindo pacientes com IC em diálise também produziram resultados conflitantes. A
pesquisa nacional e análise de propensão, incluindo 4.771 pacientes taiwaneses com IC crônica e em diálise mostrou que inibidores da ECA e BRAs reduziram todas as causas de mortalidade (HR, 0,80 \[0,72-0,89]) e mortalidade cardiovascular (HR, 0,76 \[0,64-0,90]). Por outro lado, uma análise retrospectiva de 2.169 pacientes do Minnesota Heart Survey mostrou que os inibidores da ECA ou BRA não conferiram quaisquer benefícios de sobrevivência em 30 dias ou 1 ano em pacientes em diálise e hospitalizados com IC.
Na prática, observamos uma maior prescrição dos BRA em relação aos iECA, tendo em vista que os iECA são mais
dialisáveis, no entanto, as evidências atuais não fazem qualquer recomendação
para a escolha.
Antagonistas dos Receptores de Mineralocorticoides (MRAs)
O uso dos MRAs nos pacientes com ICFER é limitado pelo risco de hipercalemia; dois pequenos estudos randomizados em pacientes em hemodiálise (HD) e diálise peritoneal (DP) mostraram benefício na melhoria de FEVE, porém o risco de hipercalemia é maior nos pacientes em HD quando comparado aos pacientes em DP. No entanto, um estudo retrospectivo com 3,464 pacientes em diálise com diagnóstico de IC apontou o uso da
espironolactona com maior mortalidade (HR, 1.35 \[1.25-1.46]), enquanto meta-análises em pacientes sem IC demonstram redução de mortalidade com uso da espironolactona.
Recentemente foi apresentado na ASN 2023 os resultados do ALCHEMIST trial, que não evidenciou benefício do uso da espironolactona em reduzir eventos cardiovasculares nos pacientes em HD, porém esse trial não foi desenhado especificamente para avaliar a população com ICFER.
Inibidores do Cotransportador de Sódio-Glicose Tipo 2 (iSGLT2)
O benefício dos iSGLT2 na população com ICFER já está bem definido, porém se faz necessário explorar seu
potencial benefício e segurança na população em diálise. O estudo Safety of Dapagliflozin in Hemodialysis Patients with Heart Failure (SDHF) trial irá avaliar o papel da dapagliflozina em pacientes com IC e em HD.
Desfibriladores Cardioversores Implantáveis (CDI)
Embora os CDI reduzam a mortalidade por todas as causas em pacientes com ICFER, sua eficácia e segurança em pacientes de diálise ainda são incertas, pois essa população foi excluída dos principais trials. Avaliando estudos retrospectivos, observamos resultados muito conflitantes; desta forma, a indicação deve ser individualizada.
Terapia de ressincronização cardíaca (TRC)
A eficácia da TRC em pacientes com ICFEr e em diálise permanece questionável devido ao falta de estudos randomizados. Dada a escassez de evidências e resultados conflitantes sobre a utilidade do TRC em pacientes em diálise e com IC, nenhuma conclusão definitiva pode ser recomendada, devendo ser o benefício avaliado caso a caso.
Dispositivos de Assistência do Ventrículo Esquerdo
Geralmente não são recomendados na população em diálise, tendo em vista o prognóstico e a elevada mortalidade (>60%). Em estudo observacional de 11 anos de seguimento, a mortalidade em pacientes em diálise foi >80%, com óbito ocorrendo com mediana de 16 dias (comparado a 2125 dias em pacientes sem DRC terminal).
Reparo de Valva Mitral Transcateter
O uso do MitraClip em pacientes com ICFER em diálise é limitado, não existem estudos prospectivos ou
observacionais para orientar a indicação ou prognóstico, porém em uma população com prognóstico reservado, a indicação tem que ser individualizada, para se evitar um tratamento fútil.
Transplante Rim-Coração
Pacientes com IC avançada e DRC em diálise compõem uma população de elevado risco de complicações após
transplante. A necessidade de diálise após o transplante cardíaco é considerável, o que aumenta a mortalidade em até 5 vezes. O transplante duplo, rim-coração, é geralmente recomendado para pacientes com IC avançada e DRC em diálise. Estudos observacionais sugerem que pacientes submetidos a transplante duplo apresentam maior sobrevida quando comparado a pacientes em diálise que foram submetidos a transplante de coração isoladamente.
Opinião Nefroatual
O manejo da IC em pacientes em diálise continua sendo um desafio significativo devido à falta de evidência
robusta e às complexidades adicionais impostas pela diálise. Abordagens individualizadas e cautelosas são necessárias para otimizar o tratamento e melhorar a qualidade de vida desses pacientes.
Desta forma, devemos individualizar o tratamento, oferecendo as opções terapêuticas com impacto clínico na população não dialítica. Nos parece ser prudente iniciar a terapia medicamentosa com doses menores (BB, iECA/BRA e/ou espironolactona), e fazer uma lenta progressão de dose, tentando assim reduzir a incidência de efeitos adversos.