A terapia de suporte renal contínuo (TSRC) é uma ferramenta vital no manejo de pacientes críticos com injúria renal aguda. No entanto, a coagulação precoce do sistema, levando à falência do filtro, permanece um desafio significativo. Além de interromper a terapia, a perda do circuito pode resultar em perda sanguínea do paciente e aumento dos custos hospitalares. Este artigo aborda os principais fatores associados à vida curta do filtro e oferece dicas práticas para garantir a patência do filtro e a eficiência da terapia.
Principais fatores que estão associados à vida curta do filtro
1-Anticoagulação inadequada
A anticoagulação é fundamental para garantir a patência do circuito extracorpóreo. O KDIGO recomenda a anticoagulação regional com citrato (ARC) como método preferencial na TSRC, devido à sua eficácia comprovada e segurança. A ARC promove anticoagulação do sistema sem aumentar o risco de sangramento, estando associada a menos episódios hemorrágicos e necessidade de transfusões em comparação com a heparina, além de prolongar a patência do circuito.
1.1-Como é realizada a ARC?
Almeja-se uma dose de 3 a 5 mmol de citrato por litro de sangue, mantendo o cálcio iônico no sangue dentro do circuito abaixo de 0,3 - 0,4 mmol/L, evitando a ativação das cascatas de coagulação intrínseca ou extrínseca. O monitoramento do cálcio ionizado pós-filtro é essencial para garantir a eficácia da anticoagulação.
Na maioria dos protocolos institucionais, inicia-se a ARC com 3 mmol de citrato por litro de sangue, ajustando-se conforme os valores de cálcio ionizado pós-filtro. Ajustes na dose inicial podem ser necessários de acordo com o risco de acúmulo ou intoxicação por citrato e a patência de filtros anteriores. Mesmo em condições de risco, com monitorização adequada e ajustes apropriados, as contraindicações absolutas ao uso da ARC são raras ou, como defendidas por alguns, inexistentes.
1.2-Quais são as condições de risco para acúmulo/ intoxicação por citrato?
Parte do complexo Ca-Citrato é eliminada no efluente (cerca de 60%, dependendo da dose de diálise), enquanto o restante retorna ao paciente. Esse complexo é metabolizado principalmente no fígado, mas também no músculo esquelético e no córtex renal, onde o citrato é convertido em três moléculas de bicarbonato. Pacientes com disfunção hepática ou altamente desnutridos/sarcopênicos possuem risco aumentado de acúmulo de citrato.
Quais são os sinais de acúmulo do citrato?
* Aumento progressivo do volume de infusão do cálcio: O cálcio é quelado progressivamente pelo citrato, necessitando de doses crescentes de cálcio para manter a normocalcemia.
* Aumento da relação Cálcio Total/ Cálcio ionizado: Valores acima de 2,5 podem indicar acúmulo de citrato, pois os níveis de cálcio ionizado diminuem devido à quelação.
Nessas situações, deve-se adotar estratégias para reduzir a dose de citrato ofertada ou até interromper temporariamente o uso de citrato. Nos pacientes que já possuem alto risco de acúmulo do citrato, medidas para reduzir a dose de citrato ofertada já pode ser uma medida na prescrição inicial da terapia.
Quais estratégias podem ser essas?
1\) Realizar a terapia com menores fluxos de sangue: Como a dose total de citrato depende do fluxo sanguíneo, utilizar fluxos menores resulta em menor dose de citrato.
2\) Realizar a terapia com doses de efluente maiores: Doses maiores de diálise removem mais citrato, reduzindo a quantidade devolvida ao paciente.
3\) Almejar um cálcio ionizado pós-capilar mais próximo a 0,3 mmol/L: Almejar níveis eficientes, porém não tão baixos, de cálcio ionizado pós-filtro pode balancear a eficácia anticoagulante e o risco de acúmulo de citrato.
Importante reforçar que sangramentos e plaquetopenia não são consideradas contraindicações para o uso de citrato. Além disso, não existem níveis de transaminases, bilirrubinas, lactato e INR que constituam contraindicações absolutas ao uso da ARC, mas simbolizam, na verdade, marcadores de maior risco de acúmulo ou intoxicação. Nessas situações, a ARC pode ser utilizada desde que adotadas estratégias como as descritas acima para reduzir carga de citrato entregue ao paciente e a monitorização adequada seja realizada por profissionais experientes.
2-Acesso vascular disfuncionante
Outro aspecto que deve ser avaliado quando há perdas do circuito é a qualidade do cateter. As pressões venosas e arteriais devem sempre ser avaliadas pelo médico nas visitas à beira leito, pois podem ser o primeiro sinal de disfunção do acesso. Exemplo prático: perdas de circuito precedidas por pressões venosas muito elevadas podem significar uma via venosa ruim ou kicking temporário por mal posicionamento do paciente não identificado pela equipe. Quanto a esse ponto, o KDIGO traz recomendações sobre o sítio mais adequado para reduzir disfunção do acesso: preferencialmente veia jugular direita, seguida de veias femorais e jugular esquerda. Além disso, deve-se optar por cateteres mais calibrosos, de acordo com a disponibilidade de cada serviço.
3-Alta taxa fração de filtração
A modalidade de TSRC prescrita influencia no risco de coagulação no circuito. A CVVHD, devido ao fluxo em contracorrente e menor pressão sobre a membrana, apresenta menor risco de coagulação em comparação com a CVVH. Na CVVH, a reposição pré-filtro diminui a hemoconcentração e o risco de coagulação em relação à reposição pós-filtro. No caso da CVVH pós-capilar deve-se ter atenção à fração de filtração, que se maior que 20 - 25% o risco de coagulação é acentuado pela hemoconcentração do sangue no interior do capilar (FF = Efluente \[UF + FR] / FS x \[1 - Ht]).
Conclusão
Para pacientes com dificuldade na patência do filtro durante a TSRC, é crucial ajustar estes três fatores: otimizar a anticoagulação, preferencialmente com ARC; garantir um acesso vascular adequado e escolher a modalidade e/ou monitorar a fração de filtração que visem minimizar o risco de coagulação no circuito considerando as particularidades de cada paciente. Ao implementar esses ajustes, prolongamos a vida útil do filtro, garantimos a eficiência do tratamento e melhoramos os resultados clínicos.