Caso clínico do artigo "Long-Term Infectious Complications of Kidney Transplantation" (**[link](https://journals.lww.com/cjasn/fulltext/2023/09000/a_gut_wrenching_infection__norovirus_in_a_kidney.21.aspx)**): Uma mulher de 62 anos submetida a um transplante renal de doador falecido (Tx renal), com indução de timoglobulina (ATG) e corticosteroides, e tratamento de manutenção com tacrolimo, micofenolato de mofetila 720mg duas vezes ao dia e prednisona 5mg uma vez ao dia. Tanto o doador quanto a receptora apresentavam IgG CMV positivo, e foi realizado tratamento profilático com valganciclovir por 3 meses. A creatinina estabilizou em 1 mg/dL no primeiro ano pós-Tx renal.
No seguimento clínico de 18 meses após o Tx renal, a paciente desenvolveu diarreia aquosa, sem presença de produtos patológicos nas fezes e perdeu 6 kg em 3 meses. A pesquisa para C. difficile e o PCR para CMV (fezes e sangue) foram ambos negativos. Foi decidido reduzir a dose do micofenolato de mofetila (MMF) para 360mg duas vezes ao dia, o que resultou em melhora parcial dos sintomas. No entanto, a paciente acabou sendo internada posteriormente com piora do quadro de diarreia, estado de caquexia e alterações nos exames laboratoriais, incluindo creatinina de 1,8 mg/dL, potássio de 3,1 mg/dL, bicarbonato de 12 mEq/L e albumina de 3,1 mg/dL.
Diante desse cenário, como investigar a diarreia desta paciente?
A diarreia é uma complicação comum em transplantados renais e pode ter causas infecciosas e não infecciosas. Deve-se ter em mente que as diarreias infecciosas podem ser causadas por vírus (20%), bactérias (25%) e parasitas (50%).
Em relação ao período pós-transplante, podemos dividi-lo da seguinte forma:
* Menos de 30 dias: Clostridium difficile e Strongyloides stercoralis
* De 30 dias a 6 meses: CMV, Cryptosporidium, Microsporidium, Isospora belli e Strongyloides stercoralis
* Mais de 6 meses: parasitas, bactérias, Cryptosporidium, Microsporidium, Isospora belli
Diante de um paciente com diarreia persistente, é comum iniciar o tratamento empírico com Ciprofloxacino e Nitazoxanida por 7 dias, pois essa combinação abrange causas parasitárias e bacterianas.
É importante investigar a presença de Clostridium difficile, especialmente se houve uso prévio de antibióticos ou internação prolongada, bem como considerar a possibilidade de diarreia por CMV, que geralmente ocorre nos primeiros 6 meses após o transplante renal, especialmente em casos com febre baixa, leucopenia, trombocitopenia e anormalidades hepáticas.
Alguns pontos importantes no manejo do paciente com diarreia persistente (superior a 7 dias) incluem:
1. Investigação de exames de fezes, como coprocultura e parasitológico de fezes.
2. Checar uso de medicamentos na prescrição potencialmente envolvidos com diarreia (ex. meftormina, micofenolato).
3. Investigação de Clostridium difficile (principalmente se houve uso prévio de antibióticos ou internação prolongada).
4. Considerar a realização de um painel molecular para identificar possíveis causas de diarreias infecciosas.
5. Investigação de CMV, com atenção especial se houve tratamento de rejeição aguda ou mudança recente na imunossupressão.
6. Avaliar a possibilidade de reduzir a dose de imunossupressores que possam estar causando diarreia.
7. Considerar a realização de colonoscopia para casos em que a investigação inicial foi negativa e não houve resposta ao tratamento empírico.
No caso clínico apresentado, o diagnóstico foi de infecção crônica por Norovírus, que é uma das principais causas de diarreia infecciosa em transplantados de órgãos sólidos, ficando atrás apenas da diarreia por C. difficile em países desenvolvidos.
##### O que é Norovírus e qual a sua importância no transplantado renal?
O Norovírus é um vírus de RNA que tem um período de incubação de 24 a 48 horas e causa diarreia infecciosa autolimitada, seguida de uma fase crônica caracterizada por diarreia intermitente com perda de peso associada e eliminação viral prolongada.
Fatores de risco para a infecção por Norovírus incluem diabetes pré-transplante, leucopenia, transplantes ABO incompatíveis, tratamento com ATG e plasmaferese.
A infecção por Norovírus pode estar associada à falência do enxerto e é possível que a redução dos imunossupressores no tratamento da diarreia e a variação nos níveis de tacrolimo estejam envolvidas.
O diagnóstico da infecção por Norovírus deve ser considerado com base na suspeita clínica e pode ser confirmado por PCR nas fezes ou teste de antígeno. O tratamento é principalmente de suporte, envolvendo reposição volêmica, controle de distúrbios eletrolíticos e agentes para a motilidade, como a loperamida.
Alguns centros relatam sucesso no tratamento com IVIG, e está em andamento um estudo de fase 2 para avaliar o papel da Nitazoxanida no tratamento da diarreia causada por Norovírus.