Caso Clínico
Sr. Carlos, 62 anos, Masculino com histórico de Hipertensão controlada e doença renal crônica em hemodiálise há 3 anos por FAV proximal esquerda desde o início das sessões. Ele veio para consulta de rotina na clínica queixando-se de falta de ar progressiva e inchaço nos tornozelos ao longo das últimas semanas, com hipotensões frequentes durante a diálise e acha que seu peso seco está errado.
Em uso de:monocordil, hidralazina, carvedilol e losartana em doses máximas. Faz uso de EPO 2x por semana e Ferro venoso 1x de 15/15 dias mantendo Hb de 12 sem
ferropenia.
Prescrição da diálise: Peso Seco Estimado: 75 kg
Ultrafiltração: média de
3-3.5L por sessão
Frequência: 3 vezes por semana
Duração: 4 horas
Parâmetros da Hemodiálise
\- Tipo de Dialisador: Dialisador de fluxo alto, biocompatível
\- Fluxo de Sangue: 350 mL/min
\- Fluxo de Dialisato: 500 mL/min
\- Temperatura do Dialisato: 36°C
Prescrição de Ultrafiltração
\- A taxa de Ultrafiltração é ajustada para remover o volume de fluido equivalente ao ganho de peso interdialítico, não excedendo 13 mL/kg/hora. Obs.: Nos últimos 3 meses está sendo frequente limitar a Uf com diálises extras )1-2x por mês.
\- Heparina: 5000 UI em bolus + 2500 UI na segunda hora da diálise
\- Sódio do dialisato 139mEq/L; K: 3mEq/L; Calcio: 3 mEq/L
Exame Físico
Pressão Arterial: 152/91 mmHg (MAPA de 48h solicitado há 2 semanas); Frequência Cardíaca: 98 bpm com ritmo
regular. ECG com sinais de sobrecarga ventricular direita esquerda, mas sem arritmias. Crepitações bilaterais na
base pulmonar e distensão jugular. Edema bilateral de tornozelos 2+/4+ simétrico e indolor
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Foi solicitado Ecocardiograma que revelou aumento do ventrículo esquerdo com fração de ejeção de 52%, ventrículo direito também dilatado. Estes achados não estavam presentes em seu ECO de admissão há 3 anos. Níveis elevados de NT-proBNP (8x acima do Limite superior da normalidade)
Doppler da FAV: O exame Doppler revelou um fluxo sanguíneo elevado através da fístula AV, caracterizado
por um padrão de onda contínuo com alta velocidade de fluxo (2130mL/min). Não foram identificadas estenoses significativas ou sinais de trombose na fístula. Observou-se uma dilatação significativa da veia eferente, indicativo de fluxo cronicamente elevado.
**Com base nos resultados do Doppler, qual as melhores alternativas para manejo do Sr. Carlos?**
1\) Intervenção cirúrgica ou procedimento de bandagem para reduzir o fluxo da fístula?
2\) Monitoramento regular do fluxo da fístula, ECO e BNP, Repetir o Doppler em intervalos regulares para monitorar as mudanças no fluxo após intervenção medicamentosa?
Vamos lá!
**Entendendo a Patogênese e a Importância do Monitoramento**
A criação de uma FAV desencadeia mudanças hemodinâmicas significativas, reduzindo a resistência vascular
sistêmica e aumentando o débito cardíaco. Essas alterações podem ser especialmente problemáticas em pacientes com doenças cardíacas preexistentes ou em casos em que o fluxo de acesso AV excede 2 L/min. É muito importante monitorar regularmente esses pacientes para identificar precocemente sinais e sintomas de insuficiência cardíaca (nem toda hipervolemia é transgressão de dieta!)
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Essas alterações são tanto agudas quanto crônicas
É importante diferenciar essas alterações para entender os impactos a curto e longo prazo da FAV e otimizar o
manejo do paciente. Aqui estão os detalhes das diferenças entre as alterações agudas e crônicas:
Alterações Agudas da Fístula Arteriovenosa
1. Aumento Imediato do Débito Cardíaco: Logo após a criação da FAV, há um aumento no débito cardíaco devido à baixa resistência vascular da fístula. Isso pode levar a alterações hemodinâmicas significativas, especialmente em pacientes com doença cardíaca preexistente (não foi o caso do nosso paciente)
2. Hipotensão: Durante e logo após a criação da FAV, pode ocorrer hipotensão devido a mudanças na dinâmica do fluxo sanguíneo.
3. Sobrecarga de Volume: Um aumento agudo no retorno venoso pode levar à sobrecarga de volume, especialmente se o paciente já tiver comprometimento da função cardíaca.
4. Alterações na Perfusão Distal do Membro: Pode ocorrer isquemia distal ou síndrome do roubo de fluxo, caracterizada por uma diminuição do fluxo sanguíneo para a mão e os dedos.
Alterações Crônicas da Fístula Arteriovenosa
1. Remodelamento Cardiovascular: Com o tempo, o aumento crônico do débito cardíaco e do volume de retorno venoso pode levar ao remodelamento do coração, resultando em hipertrofia do ventrículo esquerdo e, eventualmente, insuficiência cardíaca.
2. Aumento da Rigidez Arterial: A exposição crônica a um maior fluxo sanguíneo pode aumentar a rigidez das artérias, contribuindo para a hipertensão e aumentando o risco de eventos cardiovasculares.
3. Anemia: A FAV pode contribuir para a anemia crônica devido ao aumento da hemólise por turbilhonamento (aneurismas e estenoses).
4. Problemas Vasculares Locais: Em longo prazo, podem ocorrer complicações como estenose, aneurismas e trombose no local da FAV.
Mas Como Fazer o Diagnóstico e a Avaliação Hemodinâmica
Para um diagnóstico preciso, é recomendado, além do exame físico e história detalhada da doença a realização
do ecocardiogramas e, em casos mais complexos, o cateterismo cardíaco direito (ex: pacientes com hipertensão pulmonar grave ou valvopatia tricúspide) que oferece uma avaliação detalhada do estado de volume do paciente, além de fornecer informações cruciais sobre o débito cardíaco e as pressões pulmonares.
A presença de um ou mais dos seguintes achados ecocardiográficos é sugestiva de insuficiência cardíaca relacionada ao acesso AV para hemodiálise:
1- Dilatação da veia cava inferior
2- Aumento ou disfunção do ventrículo direito
3- Elevação nas pressões estimadas da artéria pulmonar ou aumento do ventrículo esquerdo.
É importante notar que a fração de ejeção do ventrículo esquerdo pode ser normal ou reduzida em pacientes com insuficiência cardíaca relacionada ao acesso AV para hemodiálise.
Exame e oclusão transitória do acesso AV
A presença de uma FAV grande e distendida ou de um enxerto AV com aumento de pulso muito forte sugere fluxo sanguíneo elevado e deve levar a uma avaliação para determinar o efeito do acesso na hemodinâmica sistêmica. Quando a FAV é ocluída transitoriamente (30 segundos), o grau de aumento (aumento) do pulso
arterial distal à anastomose AV é proporcional ao fluxo arterial.
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A oclusão máxima transitória (esfigmomanômetro insuflado a 50 mmHg acima da pressão sistólica por 30 segundos) de um acesso geralmente diminui a frequência cardíaca, aumenta a pressão arterial e reduz a pressão
venosa; isso foi denominado sinal de Nicoladoni-Branham. Deve ser realizado por profissional experiente e confesso que nunca fiz na prática (comenta depois se você já viu ou já fez essa técnica😊)
Foi demonstrado que o sinal de Nicoladoni-Branham está relacionado à ativação dos barorreceptores arteriais e ao aumento da sensibilidade do barorreflexo arterial.
Além da diminuição da frequência cardíaca, há também aumento da pressão arterial e uma diminuição do débito cardíaco. Em uma revisão de 17 pacientes, aumentos na resistência vascular sistêmica e na pressão arterial média durante a oclusão pneumática de uma fístula AV cirúrgica foram preditivos de uma redução na hipertrofia ventricular esquerda (HVE) após a ligadura da fístula AV.
Diagnóstico Diferencial
Para pacientes que desenvolvem insuficiência cardíaca nova ou piora algum tempo após a criação do acesso para hemodiálise, a avaliação clínica e ecocardiográfica deve incluir a avaliação de outras causas potenciais
de descompensação, como:
1\) Sobrecarga de volume
2\) Disfunção sistólica de VE
3\) Doença valvar
4\) Fibrilação atrial
5\) Hipertiroidismo
6\) Anemia
7\) Doença pulmonar crônica
8\) Deficiências vitamínicas (beribéri) – alcoolistas e desnutridos
O Sr. Carlos apresenta sintomas clássicos de insuficiência cardíaca. A presença de uma fístula AV de alto fluxo, juntamente com a hipertensão e a doença renal crônica, aumenta o risco de insuficiência cardíaca. O ecocardiograma e os níveis elevados de NT-proBNP apoiam este diagnóstico.
Qual foi o Manejo deste paciente?
1. Otimização do Tratamento Anti-Hipertensivo:Ajuste das medicações para melhor controle da pressão arterial (diuréticos + vasodilatadores+ aumento frequência para 4x por semana)
Mesmo após isto, 2 meses após o paciente continuou progredindo com os sintomas e apresenta piora dos parâmetros no eco e no doppler. Quais as opções?
Gestão do Fluxo da Fístula AV: Consulta com cirurgia vascular para avaliação de uma possível intervenção para reduzir o fluxo da fístula.
A intervenções possíveis são: Bandagem de precisão ou fechamento da FAV.
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Guardamos o fechamento da FAV para casos de refratariedade
#### Opinião NefroAtual
Na prática clínica, é essencial para os nefrologistas manter uma abordagem vigilante e proativa no manejo de
pacientes com acesso para hemodiálise. A compreensão da patogênese da insuficiência cardíaca nestes pacientes, juntamente com um monitoramento rigoroso e intervenções baseadas em evidências, pode melhorar significativamente a qualidade de vida e os resultados clínicos. Este artigo ressalta a importância de uma abordagem multidisciplinar (nefro, cardio e cirurgião vascular), envolvendo tanto os aspectos técnicos da nefrologia quanto uma compreensão profunda das complexidades cardiovasculares associadas ao
tratamento da doença renal crônica.
E vocês? Já tiveram que fazer algum procedimento cirúrgico em algum paciente por alto fluxo? Comenta aqui! 😊
Referências:
1- European Heart Journal (2017) 38, 1913–1923 doi:10.1093/eurheartj/ehx045
2- Kidney Int Rep (2021) 6, 544–551; [https://doi.org/10.1016/j.ekir.2020.11.002](https://doi.org/10.1016/j.ekir.2020.11.002)
3- European Heart Journal (2017) 38, 1913–1923 doi:10.1093/eurheartj/ehx045
4- Translational Sciences in Cardiac Failure Secondary to Arteriovenous Fistula in Hemodialysis
PatientsPMID: 33556504 DOI: [10.1016/j.avsg.2021.01.071](https://doi.org/10.1016/j.avsg.2021.01.071)
5- Evaluation and management of heart failure caused by hemodialysis arteriovenous access. UpTpDate