Intoxicação por citrato na contínua: quando suspeitar e como tratar
A anticoagulação regional com citrato é eficaz e segura, mas o risco de acúmulo exige atenção. Conheça as condições de risco, sinais de acúmulo e estratégias práticas para manejo dessa complicação.
A anticoagulação é fundamental para garantir a patência do circuito extracorpóreo. O KDIGO recomenda a anticoagulação regional com citrato (ARC) como método preferencial na terapia contínua de suporte renal (TSRC), devido à sua eficácia comprovada e segurança. A ARC promove anticoagulação do sistema sem aumentar o risco de sangramento, estando associada a menos episódios hemorrágicos e necessidade de transfusões em comparação com a heparina, além de prolongar a patência do circuito.
Quais são as condições de risco para acúmulo do citrato?
O citrato é metabolizado principalmente no fígado, mas também no músculo esquelético e no córtex renal, onde uma molécula de citrato é convertido em três moléculas de bicarbonato. O risco de acúmulo de citrato aumenta em condições que reduzem a capacidade metabólica, como:
1. Disfunção hepática ou choque grave: a hiperlactatemia é um marcador relevante de redução na capacidade do paciente de metabolizar o citrato. Outros indicadores que podem ser avaliados em conjunto incluem hiperbilirrubinemia, aumento do INR e elevação significativa das transaminases.
2. Redução de massa muscular: comum em crianças ou pacientes altamente desnutridos ou sarcopênicos.
Pacientes com essas condições apresentam maior risco de intoxicação. Nestes cenários, caso indicada a ARC, deve-se realizar prescrição de baixas doses de citrato e adotar estratégias que reduzem a dose de citrato entregue ao paciente. Importante destacar que em cenários de baixa experiência com a ARC e pacientes de alto risco, especialmente aqueles com acidose ou hipocalcemia, deve-se considerar iniciar a TSRC sem a ARC.
Quais são os sinais de acúmulo do citrato?
* Necessidade de aumento progressivo da dose de cálcio infundida e/ou hipocalcemia persistente avaliada pelo cálcio ionizado pré-circuito: o cálcio ionizado é quelado pelo citrato, necessitando de doses crescentes de cálcio para manter a normocalcemia.
* Aumento da relação Cálcio Total/ Cálcio ionizado: Valores acima de 2,5 podem indicar acúmulo de citrato, refletindo a redução do cálcio ionizado devido à quelação. Dois pontos de atenção no cálculo dessa razão são: 1) O cálcio total e o ionizado devem estar na mesma unidade; 2) Os estudos que utilizam essa relação não ajustam o cálcio total pelo valor da albumina.
* Diante da incapacidade de metabolizar e com o acúmulo do complexo cálcio-citrato o paciente pode desenvolver uma acidose metabólica com ânion gap aumentado.
Dessa forma, pacientes com alto risco de intoxicação pelo citrato devem realizar dosagens de cálcio ionizado pré e pós-circuito, além de monitorização do pH, a cada 6 ou 8 horas, incluindo a dosagem de cálcio total pelo menos uma vez ao dia.
Como tratar o acúmulo do citrato?
O tratamento depende da gravidade do quadro. Nos cenários de hipocalcemia e acidose mais graves a ARC deve ser interrompida imediatamente. No entanto, em casos leves podem ser adotadas estratégias que visem reduzir a dose de citrato ofertada ao paciente:
1. Realizar a terapia com menores fluxos de sangue: como a dose total de citrato se relaciona com o fluxo de sangue utilizado, utilizar fluxos menores resulta em menor dose final de citrato.
2. Realizar a terapia com doses de efluente maiores: o aumento da dose de diálise promove maior remoção do complexo cálcio-citrato, reduzindo a quantidade devolvida ao paciente.
3. Almejar um cálcio ionizado pós-capilar maiores, mais próximos a 0,3 - 0.35 mmol/L: Almejar níveis eficientes, porém não tão baixos, de cálcio ionizado pós-filtro pode balancear a eficácia anticoagulante e o risco de acúmulo de citrato.
A adoção dessas estratégias podem ser realizadas de forma combinada e devem promover melhora progressiva dos sinais de acúmulo de citrato. Caso contrário a ARC deve ser interrompida.
A intoxicação por citrato na TSRC é uma complicação rara mas que exige atenção especial, especialmente em pacientes de alto risco. A identificação precoce, baseada na monitorização cuidadosa dos níveis de cálcio total, cálcio ionizado e da acidose é essencial para prevenir complicações graves.