A injúria renal aguda (IRA) é um dos problemas de saúde mais comuns dentro do ambiente hospitalar, especialmente na UTI. Os desfechos da IRA são variáveis nas diferentes regiões do mundo, no entanto até 70% dos casos na UTI requerem terapia renal substitutiva (TRS). Cada modalidade de TRS neste cenário possui vantagens e limitações.
Nos países desenvolvidos, a diálise peritoneal (DP) é subutilizada, em parte por falta na familiaridade com a técnica em si, assim como com a inserção do cateter pelo nefrologista. Outra preocupação com a utilização da DP na IRA relacionada à sepse consiste em clearance inadequado de solutos e/ou aumento de mortalidade. Por outro lado, a pandemia pela COVID19 reforçou pontos positivos da DP, como simplicidade da técnica, menor custo, sem risco de coagulação do circuito e menor exposição ao vírus.
O guideline da sociedade internacional de diálise peritoneal (ISDP) de 2020 recomenda que a DP pode ser utilizada como uma modalidade na IRA. Estudos brasileiros de Ponce e colaboradores já demonstraram que a DP de alta dose (ou alto volume) tem efeitos comparáveis com hemodiálise (HD) intermitente diária. Da mesma forma, ensaios clínicos randomizados (ECR) já demonstraram que a DP de baixa dose apresenta resultados equivalentes à DP de alta dose. No entanto, não existiam ainda ECR que comparavam DP de baixa dose com HD intermitente três vezes por semana na IRA.
* Ponce e colaboradores publicaram em 2011 um ECR que não encontrou diferença de mortalidade e controle metabólico entre DP com Kt/V semanal de 3.43 (32-38 litros/dia) vs 4.13 (40-48 litros/dia) na IRA;
* Parapiboon e Jamratpan em 2017 publicaram um ECR que não encontrou diferença entre utilizar a dose intensiva (Kt/V 0.61 por sessão ou 36 litros por dia ou Kt/V 3.3 semanal) em relação à dose padrão (Kt/V 0.38 por sessão ou 18 litros por dia ou Kt/V 2.26 semanal), seja em termos de mortalidade, controle metabólico ou dependência de diálise com 90 dias.
Nesse cenário, foi publicado no JASN ([link aqui](https://journals.lww.com/cjasn/abstract/9900/lower_dosage_acute_peritoneal_dialysis_versus.394.aspx)), um ECR multicêntrico de não inferioridade para comparar a mortalidade em pacientes submetidos à DP de baixa dose (Kt/V semanal de 2.2) e à HD intermitente realizada três vezes por semana para tratar IRA. Esse estudo foi realizado em quatro hospitais terciários da Tailândia em pacientes
de UTI e de enfermaria com IRA KDIGO 3 com indicações convencionais de diálise. Eles foram randomizados 1:1 para realizar DP de baixa dose ou HD três vezes por
semana.
Critérios de exclusão:
* Limitações para realização de DP: cicatriz de
laparotomia prévia, hérnia umbilical ou inguinal ou peritonite.
* Limitações para realização de HD: dificuldade de acesso
vascular.
* Além de taxa de filtração glomerular prévia \< 60 ml/min/1.73m² , hipercalemia com alteração eletrocardiográfica ou maior ou igual que 7 meq/L, acidose metabólica grave (pH menor ou igual a 7) ou hipervolemia com risco de insuficiência respiratória.
O cateter de DP era inserido à beira leito pelo nefrologista e a terapia era iniciada imediatamente. Utilizou-se soluções com glicose 2.5% ou 4.25% para otimizar a ultrafiltração. O volume total de dialisato por dia foi 18 a 24 litros com volume de infusão de 1.5 a 2 litros por ciclo com cerca de 1.5 horas de tempo de permanência por ciclo, com 12 ciclos por dia nos primeiros 3 dias e então, ajustado para tempo de permanência de 3 a 6 horas a depender do status volêmico e perfil metabólico. Quanto à HD, era passado cateter duplo lúmen em veia jugular ou femoral direita e realizada terapia por 4 horas, 3 vezes por semana, Kt/V prescrito de 1.3 na primeira semana, seguida por frequência semanal de 2 a 3 sessões.
O desfecho primário foi mortalidade em 28 dias. Os desfechos secundários foram sobrevida livre de diálise em 28 dias e recuperação renal em 28 dias (diurese maior que 500 ml/dia ou maior que 2000 ml/dia com estímulo diurético). Calculava-se o Kt/V de ambas as terapias visando avaliar o valor atingido com cada prescrição.
Foram incluídos 157 pacientes, 80 para o grupo de DP e 77 para o grupo de HD. Houve crossover em 5 pacientes do estudo, 3 do grupo de DP foram transicionados para HD por falência primária do cateter e 2 do grupo de HD foram transicionados para DP por instabilidade hemodinâmica.
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Os grupos no baseline tinham características semelhantes. A idade média foi 57 anos, 73% deles eram pacientes de UTI e a maior parte estava em uso de droga vasoativa (75%) e em suporte ventilatório (77%), enquanto que 68% das causas de IRA foram sepse. Entre os exames no início da diálise, a ureia média era 169 mg/dL e potássio 4.6 mEq/L.
A mortalidade em 28 dias foi comparável entre os grupos tanto na análise por intenção de tratar como na per-protocol, como demonstrado na imagem abaixo:
Também não houve diferença significativa entre os grupos com relação à sobrevida livre de diálise em 28 dias e à recuperação renal em 28 dias.
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No grupo em DP, a média de Kt/V de ureia semanal entregue foi 2.11 +/- 0.70 (semelhante ao Kt/V semanal de 2.2 recomendado pela ISPD), enquanto que no grupo de HD foi 2.87 +/- 1.11. Do ponto de vista do manejo volêmico, na DP a UF média foi de 900 ml por dia, com 5% das prescrições utilizando glicose 4.25%, enquanto que na HD a UF média foi de 1500 ml por dia. O balanço hídrico acumulado após 7 dias de diálise e o controle
metabólico foram comparáveis entre os grupos.
Entre as complicações, as principais estão descritas abaixo conforme a tabela a seguir:
* 10% dos pacientes do grupo de DP tiveram peritonite;
* 3% dos pacientes do grupo de DP tiveram vazamento peri-cateter;
* 4% dos pacientes precisaram transicionar de DP para HD por disfunção de cateter;
* 31% dos pacientes do grupo de HD tiveram instabilidadehemodinâmica (PAS menor que 90 mmHg);
* 3% dos pacientes do grupo de HD precisaram transicionar para DP por instabilidade hemodinâmica por mais de 30 minutos.
Em termos de complicações, no grupo da HD houve mais arritmias e hipotensão intradialítica, estando associadas à injúria isquêmica, TRS inadequada e redução de recuperação renal. No grupo de pacientes em DP, houve mais
hipocalemia. Quanto à incidência de peritonite, foi menor que a previamente reportada na literatura.
Quase todos os pacientes em HD não atingiram o Kt/V alvo recomendado pelo KDIGO na IRA (Kt/V 3.9). Entre as explicações para isso, pode ser o fato de que mais de 50% dos pacientes utilizavam droga vasoativa no início da TRS e, por isso, houve elevada incidência de arritmia e hipotensão intradialítica. Apesar disso, a taxa de mortalidade no grupo de HD intermitente foi consistente com perfil de gravidade dos pacientes, quando comparado com os estudos prévios. Isso pode significar que em pacientes críticos com alterações hemodinâmicas, DP pode ser mais interessante que HD intermitente. É importante reforçar que o artigo não representa um contexto em que há todas as modalidades de TRS, como por exemplo hospitais que possuem terapia hemodialítica contínua.
Opinião Nefroatual:
A despeito das crescentes evidências de similaridades e complementaridade das modalidades de TRS, a diálise peritoneal ainda é subutilizada, em parte pela falta de familiaridade dos profissionais de saúde com a técnica, assim como pela ausência de fluxos bem estabelecidos em relação à passagem do cateter de diálise peritoneal. Neste artigo, mais uma vez é reforçado o papel da DP como uma possível alternativa no tratamento da IRA, especialmente em serviços onde não há disponibilidade de terapia contínua, sendo um método que se destaca
diante da sua simplicidade e menor custo.