Um ponto muito importante no tratamento do paciente com doença renal crônica (DRC) é a definição do seu plano de vida. Dentro desse plano, inclui-se a decisão quanto à modalidade de terapia renal substitutiva (TRS) que deseja realizar ou não, assim como, uma vez definida a modalidade de preferência e a proporcionalidade da TRS, deve-se planejar o melhor momento para criação do acesso para a diálise.
Os acessos arteriovenosos para hemodiálise são fáceis de canular, promovem um fluxo de sangue eficiente para a terapia, possuem uma excelente taxa de patência a longo prazo associado com mínimas taxas de complicações, é
custo-efetivo, além de possuírem um bom índice de satisfação pelos pacientes.
Considerando a relevância desse tema para a nefrologia, em março de 2024 o JAMA trouxe uma revisão sobre o acesso arteriovenoso ([disponível aqui](https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/2816266)).
Em que momento o nefrologista deve encaminhar o paciente para confecção do acesso arteriovenoso?
Em geral, é recomendado que sejam encaminhados para confecção do acesso arteriovenoso aqueles pacientes que estão evoluindo com perda progressiva de função renal e atingem uma taxa de filtração glomerular (TFG) entre 15 e 20 ml/min/1.73m² ou antes, caso os pacientes estejam evoluindo com uma rápida perda de TFG (> 10
ml/min/ano). O KDIGO de doença renal crônica de 2024 também trouxe a sugestão de utilizarmos o KFRE ([acesse a
calculadora do Nefroatual](https://www.nefroatual.com.br/calculadoras/calcatual)) nos pacientes com TFG menor que 20 ml/min/1.73m² e, naqueles que possuem um risco maior ou igual a 40% de falência renal em 2 anos, deve ser indicada a confecção do acesso arteriovenoso.
Fístula, enxerto arteriovenoso ou cateter?
Como esquematizado na imagem abaixo existem dois tipos principais de acesso arteriovenoso:
* Fístula arteriovenosa autógena: há uma anastomose direta da artéria com a veia, sendo geralmente uma anastomose término-lateral como demonstrado na imagem abaixo. Dessa forma, durante o amadurecimento do
acesso a veia dilata e sua parede se espessa, permitindo a repetida canulação para a hemodiálise.
* Enxerto arteriovenoso: há uma anastomose indireta da artéria com a veia, por interposição de um material não autólogo, que permite a canulação repetida para a hemodiálise.
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Cada tipo de acesso vascular tem suas indicações, vantagens e desvantagens, alguns aspectos relevantes são detalhados no texto e na imagem abaixo.
* As fístulas arteriovenosas (FAV) apresentam a vantagem de possuírem maiores taxas de patência a longo prazo. Isso decorre da menor taxa de complicações, como trombose e menor necessidade de intervenções cirúrgicas. No entanto, nem todos os pacientes possuem vasos adequados para a confecção da FAV, além de esse tipo de acesso possui maior taxa de falência primária.
* Os enxertos arteriovenosos possuem menor taxa de falência primária, logo, se paciente com alto risco de falência de maturação, a confecção do enxerto deve ser preferido em relação à FAV.
* Os enxertos arteriovenosos podem já estar adequados para utilização após 2 a 4 semanas da sua confecção. Enquanto que o cateter é prontamente disponível para início de hemodiálise. Dessa forma, em caso de
necessidade de início imediato de TRS, essas estratégias são mais interessantes, visto que as FAVs demoram cerca de 2 a 6 meses para estarem adequadamente maturadas.
* O KDOQI de acesso vascular sugere que os cateteres devem ser utilizados para o longo prazo apenas quando os acessos arteriovenosos não são opções possíveis.
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O que são os “early-cannulation grafts”?
Recentemente foram desenvolvidos enxertos que possuem camadas de outros materiais além do politetrafluoretileno habitualmente utilizado e que, por isso, podem ser puncionados dentro de 24 a 72 horas de sua confecção. Esses novos tipos de enxerto permitem reduzir a necessidade de cateter temporário, mantendo a
patência em 12 meses.
O que é esperado após confecção do acesso arteriovenoso?
É esperado que após a confecção do acesso arteriovenoso o membro do paciente fique dolorido, hiperemiado e edemaciado, com alívio parcial à elevação do membro. Tais sintomas tendem a persistir até 2 a 3 semanas após a confecção do acesso. Além disso, o formigamento dos dedos e da mão pode persistir por até 4 a 6 semanas, no entanto, caso haja persistência dos sintomas após esse período, deve-se suspeitar de síndrome de roubo do fluxo.
Complicações do acesso arteriovenoso
As complicações relacionadas ao acesso arteriovenoso, detalhadas na imagem acima, podem ser classificadas em disfunções relacionadas ao fluxo e não relacionadas ao fluxo.
Fluxo relacionadas:
* Estenose: é a principal causa de hipofluxo no acesso arteriovenoso e consiste em uma importante causa de trombose e perda do acesso. Geralmente decorre de hiperplasia neointimal progressiva por tensão de
cisalhamento no acesso e/ou trauma cirúrgico.
* A angioplastia está indicada sempre que houver disfunção do acesso (hipofluxo e prejuízo na eficiência da hemodiálise), no entanto, na presença de estenose assintomática, não está indicada angioplastia
preemptiva.
* Trombose: é uma complicação 2 a 3 vezes mais comum no enxerto que na fístula arteriovenosa.
* Estenose venosa central: está indicada angioplastia para os casos sintomáticos, com edema (do membro, pescoço, cabeça ou mama) e/ou aumento de pressões venosas no acesso com necessidade de redução do fluxo de sangue e/ou sangramento persistente após decanulação. Por outro lado, estenoses assintomáticas não devem ser abordadas, por aumentar risco de evolução para estenose sintomática e por aumentar o risco de perda de patência da veia.
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Não relacionadas a fluxo:
Infecção:
* A técnica de buttonhole (ou casa de botão) está associada a aumento do risco de infecções de fístula arteriovenosa.
* A taxa de infecções de enxertos são maiores que FAVs e, em geral, requerem ressecção parcial ou total do enxerto para tratamento adequado do processo infeccioso.
Aneurisma:
* Os aneurismas são dilatações do acesso que envolvem todas as camadas da parede do vaso, enquanto que os pseudoaneurismas envolvem apenas algumas camadas. Geralmente decorrem de múltiplas punções no mesmo sítio com consequente fragilidade da parede ou da presença de uma estenose de efluxo.
* Apenas a presença do aneurisma ou pseudoaneurisma não requer intervenção imediata. No entanto, é essencial o monitoramento e diante de algum dos sinais de alarme a seguir, requer avaliação cirúrgica com urgência:
* Rápida expansão da dilatação
\*\*Erosões persistentes
\*\*Sangramentos recorrentes
\*\*Pele fina e brilhosa
* Insuficiência cardíaca de alto débito: mais comumente decorre de acessos confeccionados em região proximal de membros e que evoluem com alto débito (fluxos maiores que 1,5 a 2 litros/minuto). O risco aumenta quando a relação do fluxo de sangue no acesso pelo débito cardíaco é maior que 20%. Nessa condição e caso os sintomas de insuficiência cardíaca não tenham outra etiologia, devem ser avaliadas estratégias que visem reduzir o fluxo do acesso arteriovenoso ou então, realizada sua ligadura.
* Síndrome de roubo de fluxo: essa complicação ocorre uma vez que as alterações hemodinâmicas decorrentes da anastomose arteriovenosa podem reduzir o fluxo sanguíneo aos tecidos distais à anastomose. Dessa forma,
pode ocorrer parestesias de dedos e mosqueamento de pele ou até, dor, cianose e necrose de tecidos. Se os sintomas forem leves, podem ser conduzidos com o aquecimento da extremidade (como com o uso de luvas). No entanto, se graves, requer ligadura de acesso.